Insiste-se na prioridade à redução do défice e da dívida pública, mesmo quando a Comissão Europeia congela a regra que impõe essa obrigação, com isso privando áreas fundamentais das verbas necessárias para assegurar o funcionamento corrente. O investimento público permanece muito abaixo do que a pandemia mostrou ser necessário para melhorar os serviços públicos essenciais, e em particular para recuperar os profissionais de saúde de que o Serviço Nacional de Saúde tragicamente carece e os professores cuja insuficiência ameaça cada ano lectivo na escola pública. Verifica-se uma perda generalizada do poder de compra dos trabalhadores — mesmo nos que tiveram um magro aumento de 0,9%, na função pública —, face a uma inflação galopante de 8% em Maio (o valor mais elevado desde 1993), e que nem as mais optimistas previsões do governo de António Costa situam abaixo dos 4% para o ano de 2022.
Uma perda de poder de compra generalizada e, ainda por cima, assimetricamente distribuída. Ao incidir sobre os produtos de consumo mais essenciais, da alimentação aos combustíveis e à energia, ela esmaga preferencialmente as famílias que já tinham rendimentos mais baixos. São estas famílias as que nesses consumos gastam todo o seu orçamento. As que não têm outros consumos acessórios, e muito menos conspícuos, de que possam prescindir. As que nunca tiveram possibilidade de fazer poupanças, apanhadas na armadilha da sobrevivência de cada mês, ou que já as perderam para ultrapassar as últimas crises. De facto, foram décadas marcadas pela participação cada vez maior das famílias em custos de serviços públicos liberalizados e privatizados. Pela perda de poder de compra com uma entrada no euro que prometia coesão mas trouxe divergência dos parceiros europeus. Pelo desemprego, pela precariedade e pelo empobrecimento, impostos nos anos da austeridade e só timidamente revertidos. E pela explosão da pobreza, das desigualdades socioeconómicas e das fragilidades territoriais desde o início da crise pandémica, algo que os apoios públicos não evitaram.
Perante a profunda crise social que se instala, e que o prolongamento da guerra na Ucrânia, tão a contento de potências e interesses económicos, só irá agravar, o Orçamento do Estado para 2022 devia ter mobilizado todos os instrumentos de política capazes de evitar a construção de uma sociedade cada vez mais polarizada. Sistematicamente, contudo, esses instrumentos ficam de fora destes documentos fundamentais, quais tabus políticos que, ano após ano, vão reproduzindo os limites com que os governos actuam.
O governo escolheu, pelo contrário, dar prioridade à redução do défice e da dívida pública. Este ano, o facto de isso ser uma escolha não podia ser mais claro, dado que nem se podem valer de uma malvada imposição de Bruxelas para justificar terem «ido além» de congelados critérios. Há outras escolhas que ilustram a desistência de instrumentos que amorteceriam muito mais os impactos da crise actual. Dotar-se desses instrumentos implicava enfrentar as pressões dos grandes patrões, aumentar salários e pensões, actuar sobre a formação dos preços no mercado, impedir abusos especulativos nos preços, aumentar o investimento público e a provisão pública de bens e serviços essenciais, taxar lucros astronómicos e colocar a fiscalidade ao serviço da justiça social. E isso não foi feito.
Deixar, uma vez mais, que uma crise engendrada pelos interesses das grandes potências e do poder económico degradem a vida de quem já vivia com mais dificuldades num país como Portugal, profundamente desigual e com um elevador social avariado há muito tempo, traz à memória uma frase muitas vezes ouvida aos mais velhos: é uma afronta à pobreza. Deixar a riqueza andar à solta, permitir a proliferação de novos multimilionários que cavalgam a crise é, de facto, uma afronta a quem vive na angústia de pagar as contas ou na dor de ver os filhos adoecerem por não lhes poder dar uma alimentação adequada. A riqueza é um problema tão sério como a pobreza.
É pobreza e desigualdade o que se cria quando se desiste sequer de taxar os lucros extraordinários, de centenas de milhões de euros, que estão a ser registados, em plena crise, pelas grandes empresas da distribuição alimentar (Jerónimo Martins, Sonae…) ou da energia (GALP, REN, EDP…). Já nestas páginas analisámos «o preço dos lucros» nestes sectores (ver a edição de Abril de 2022), bem como o quadro mais geral de transferência de rendimento «do trabalho para o capital» que está a operar-se na sociedade (ver o artigo de Paulo Coimbra e João Rodrigues, Maio de 2022). Agora são as notícias do sector bancário a revelar que os maiores bancos a operar em Portugal (Caixa Geral de Depósitos, BCP, Santander, BPI, Novo Banco e Montepio) fecharam o primeiro trimestre de 2022 com lucros superiores ao dobro aos que tinham tido há um ano, num total conjunto de 616,5 milhões de euros (1). A explicar estes resultados, além de factores como o aumento de comissões (+15%), surge a redução do quadro de trabalhadores: menos 2914 pessoas face ao ano anterior nos seis estabelecimentos bancários.
Enquanto são escritos os novos capítulos da história cor-de-rosa da riqueza e do luxo em Portugal (com as notícias sobre o disparar das vendas dos automóveis mais caros e tudo o mais que aí vem), do outro lado da sociedade preparam-se as bandeiras negras da fome que voltarão às manifestações de rua. Quem nelas participar voltará a ouvir um silêncio aflito. Diga-se já, portanto, enquanto é tempo: as empresas que têm lucros e despedem precisam de saber que não receberão apoios públicos; os seus lucros têm de ser muito mais taxados e os seus lucros extraordinários exigem, com carácter de urgência, um imposto extraordinário; as empresas com lucros não podem continuar a exibi-los alegremente no dia de demonstrar resultados aos accionistas e passar o resto do ano a negarem aumentos salariais aos trabalhadores; os apoios públicos, mais ainda em tempo de crise, têm de ser condicionados à criação e manutenção de emprego, à existência de trabalho com contrato e direitos — e este combate à precariedade faz-se a partir da erradicação de vínculos informais e precários no sector público.
Multiplicam-se diariamente as fontes de diminuição do poder de compra de classes sociais já vulnerabilizadas. Aumentam diariamente os preços, em grande parte especulativos, da alimentação e de outros bens essenciais. Sobem agora as taxas de juro, com impacto no preço da habitação. Diminuindo o poder de compra aumentam as dificuldades das micro, pequenas e médias empresas, aquelas sobre as quais os grandes patrões (e os seus representantes) sempre dizem que constituem o grosso do tecido nacional, quando se trata de evitar aumentos salariais, mas que são esquecidas (por esses mesmos representantes e pelos poderes públicos) quando se trata de distribuir apoios. Irá o país reduzir-se, a pouco e pouco, a um padrão de especialização produtiva assente no turismo e no imobiliário, e agora também na «inovação militarizada» (ver nesta edição o artigo de Luís Bernardo), prescindindo do resto do seu tecido produtivo? Irão os governos europeus, desta Europa transformada em palco de guerra, actuar antes ou só depois de as rotundas do continente serem povoadas por «coletes amarelos» e bandeiras negras?
(1) Rafaela Burd Relvas, «Banca arranca ano com dobro dos lucros e menos 3000 trabalhadores», Público, 30 de Maio de 2022.